terça-feira, 18 de outubro de 2011

Bruxas e mulheres sábias: as de fora.

O texto abaixo foi extraído e adaptado da minha tese de doutorado: Teodora e Porcina: faces simbólicas da natureza em narrativas de mulheres sábias.


A aversão à mulher e ao feminino, com todo o universo estranho que os rodeia, tem sido a fonte dos maiores mal-entendidos no campo da Bruxaria. O temor ao desconhecido foi transferido, em muitos momentos críticos em que a Bruxaria saiu das sombras, para a figura da bruxa ou feiticeira. Em geral a mulher sábia dos povoados, a curandeira ou parteira, aquela que sabia fazer os filtros e as poções, era a ponte entre o mundo da matéria e o mundo feérico, entendida portanto, como fonte de todo o mal que pudesse atingir àquela sociedade, pois era ela personificação do desregramento. A bruxa é entendida, nessa lógica, como parceira do mal maior, do maior dos desordenadores, o próprio Diabo. A demonização das mulheres sábias aparece claramente nas confissões extraídas sob tortura pelos inquisidores, que dirigiam as falas dos inquiridos para um imaginário onde imperavam a prática do sabá e a adoração ao Diabo. Quando, na verdade, o que gerou os primeiros inquéritos foram as práticas e crenças agrárias ou fúnebres de herança pagã que, por ocasião da imposição da Igreja Católica, tornou-se ameaça a ser eliminada.

Guinzburg (1988), entre outros estudiosos da inquisição, constataram surpresos que as práticas dos bruxos (no caso dos Benandanti, bruxos de uma região da Itália), nada tinham a ver com o sabá e o Diabo ou qualquer demônio. “[...] quando nos dedicamos a examinar os ritos que os benandanti afirmavam realizar nos seus encontros noturnos, toda a analogia com o sabá desaparece” (1988, p. 42). Porque, de fato, as práticas dos Benandanti mais se aproximavam das viagens xamânicas. Suas crenças parecem, como mostra Guinzburg, pertencerem quase que absolutamente às camadas populares, diferentemente do que se denominou de magia ou magia natural (tratados de magia natural), as quais acabaram tomando formas mais eruditas.

De modo que, regidos por seus tratados de demonologia, os inquisidores do Santo Ofício, se viam perplexos diante de depoimentos que falavam das batalhas noturnas dos Benandanti com os feiticeiros. Como os inquisidores poderiam condenar uma mulher por lutar com os feiticeiros (seus supostos adversários) em defesa dos campos e da colheita farta? Os interrogatórios, que começavam brandamente, ganhavam contornos maléficos quando os inquisidores faziam questionamentos diretivos sobre a presença do Diabo. Se ele guiava os Benandanti, e se havia locais onde se reuniam para banquetear-se, em sugestão ao Sabá.  Enredados pelo medo, os acusados acabavam por incluir em suas falas esses aspectos, que rendiam aos inquisidores um sentido e um modo de punição lógico e correspondente aos seus tratados. E concluíam os inquéritos com confissões de adoração ao Diabo e orgias noturnas obtidas por meio da tortura.

[...] Há, nas perguntas dos juízes, alusões mais que evidentes ao sabat das bruxas – que era, segundo os demonologistas, o verdadeiro cerne da feitiçaria: quando assim acontecia, os réus repetiam mais ou menos espontaneamente os estereótipos inquisitoriais então divulgados na Europa pela boca de pregadores, teólogos, juristas, etc (GINZBURG, 1991, p. 206).

Muitas dessas bruxas eram, na verdade, mulheres que de um modo ou de outro exerciam práticas fora da norma. Como se acreditava que elas possuíam capacidades estranhas, como curar, prever o futuro, falar com os mortos, voar em espírito pelos campos, conhecer o uso das ervas, as pessoas procuravam-nas, mas também tinham medo delas. Essas mulheres eram operadoras do Saber Mágico, pois pertenciam ao limiar entre o dentro e o fora, o mundo humano e o sobrenatural. Eram as “mulheres de fora”, chamadas na Sisília de donne di fuori, objeto de estudo de Gustav Henningsen (1990), entendidas como situadas entre a fada e a bruxa, que tinham a capacidade de curar os doentes, de identificar os malefícios e os anular.

As donne di fuori eram consideradas pela população figuras mágicas benevolentes, cujos traços se situavam na fronteira entre o universo do sabá, da mitologia clássica e dos contos maravilhosos: elas se organizavam em companhias e se reuniam em assembléias noturnas em que o demônio não estaria presente; eram descritas como belas mulheres vestidas de branco ou de negro, mulheres cuja origem sobrenatural era sublinhada pela cauda ou por patas de animais. A Inquisição da Sicília ocupou-se de dezenas de mulheres assimiladas a essa figura mítica, acusando-as de bruxaria (BETHENCOURT, 2004, p. 22)[1].

Portanto, os relatos de reuniões ou assembleias de bruxas estão, em alguns momentos, relacionadas ao sabá, mas não ao Diabo. Já mais tardiamente, as procissões das bruxas e dos mortos, os voos, as poções e o próprio sabá, com a presença marcante do demônio, consolidaram todo um imaginário da bruxaria demoníaca em grande parte da Europa. Mas, o que estudiosos como Guinzburg, Henningsen e Bethencourt, entre outros, vão demonstrar, ao enfocar determinadas comunidades isoladas ou ainda não afetadas por esse imaginário, é que as práticas e crenças das bruxas se relacionam muito mais ao xamanismo. Ou, em alguns casos, essencialmente às velhas e tradicionais crenças pagãs. Ou seja, mais próximas das histórias orais e das narrativas tradicionais onde há a presença marcante do universo mágico ligado à Mulher Sábia, seja como bruxa, fada ou ser da natureza, cujo principal atributo é transitar entre o mundo de fora e o de dentro. E, por esse acesso, portar a capacidade de curar, falar com os mortos, prever o futuro, ou conhecer as marés astrológicas e uso das pedras e dos elementos.

BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. Trad. Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das letras, 2006.
GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. Trad. Jônas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. Trad. Nilson Moulin Louzada. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.
HENNINGSEN, Gustav. The ladies from Outside: An Archaic pattern of the witche's sabbath. Early modern European witchcraft Oxford, 1990.





[1] Grifo meu.

2 comentários:

  1. Oi luz adorei o blog e o texto....Tudo de bom.
    Luna.

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  2. Lunaaa, saudades. Obrigada pela visita, venha sempre. Beijos

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