domingo, 24 de abril de 2011

Cena de um poema real

Ela sonhava muitas coisas em dias assim chuvosos e felizes. Lia Rilke:

“Quem se verte como fonte, conhece-o o conhecimento,
que o segue, fascinado, pela serena criação,
na qual o começo é o fim e o fim o começo, amiúde”.

Gostava da sensação de ser embalada ao ler – a chuva batendo de leve na janela e as palavras deslizando pela mente. Ele ali, deitado na cama, o som do seu sono preenchendo de vida a manhã silenciosa do domingo. A cama quente, a luz tépida passando com graça pelo entrelaçado linho da cortina.

Ela parava – pausa calculada – para contemplar os cabelos grisalhos dele, espalhados no travesseiro. Neruda segredou, do livro aberto sobre a cama:

“Nos bosques, perdidos, cortei um ramo escuro
e os lábios, sedentos, levantaram seu sussurro:
era talvez a voz da chuva chorando,
uma companhia vermelha ou um coração cortado”.

E ela ficou pensando quem havia cortado tão belo coração e chorou por ele, baixinho, para não acordá-lo.  E o vento elevou o linho, acariciou os cabelos dele e virou as páginas de Neruda:

“Em teu abraço eu abraço o que existe,
a areia, o tempo, a árvore da chuva,
E tudo vive para que eu viva:
sem ir tão longe posso vê-lo todo:
veio em tua vida todo o vivente.”

E os culpados por ela abandonar, por fim, os livros, a razão – servindo eles  doravante de lastro ao amor – não foram os deuses, mas a chuva, o vento, o som da vida que ele emanava docemente. 


Nada foi preciso dizer, eu te amo já é tudo.

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